terça-feira, 18 de maio de 2010

A Pedagogia da Roda

Estar na roda é o primeiro passo de nosso trabalho. E isto começou há muitos anos. Precisamente em 1984, na cidade de Curvelo/MG, “a capital de minha literatura”, como dizia Guimarães Rosa. Naquela oportunidade, eu estava trabalhando com as 35 escolas municipais, a maioria situada na zona rural. Nos primeiros dois meses, a única coisa que recebia delas eram listas contendo suas necessidades materiais. Em geral, faltava tudo: livros, cadernos, giz, comida, material de limpeza, carteira, água, material de apoio. E a rotina até então no Departamento de Educação era carimbar estas listas e repassá-las para o almoxarifado da prefeitura.Como imaginava que aquela situação não iria mudar tão cedo, resolvi convocar os professores para uma conversa.Não sou almoxarife, nem gerente de supermercado, nem posso ficar dependendo de outros. Sou educador. E a minha questão é: dá para fazer educação, mas de boa qualidade, sem escola, já que as escolas nas quais vocês trabalham não oferecem condições ?

Como um corolário destas, surgiu outra questão, que virou um mote para um seminário:
- Será que dá para se fazer essa educação - de boa qualidade - debaixo do pé de manga, já que aqui o que mais tem são mangueiras?
Nos primeiros minutos, todas ficaram em silêncio. Passado o susto inicial, algumas começaram a balbuciar: “não sei...”, “ninguém”. Resolvemos fazer algumas experiências. Não tínhamos outra alternativa. O jeito seria aprender a aprender. Um grupo de professoras do pré-escolar resolveu correr o risco. Naquele momento elas tinham como “programa”, desenvolver atividades de “coordenação motora” e “criatividade”. Na prática, isto acontecia assim: pegavam uma folha mimeografada onde havia um pato desenhado. A tarefa era fazer os meninos colorir o pato.

Em tempo, ah! se algum garoto quisesse colorir o seu pato de azul, levava logo um bronca: “já viu pato azul?”. Então todos coloriam o pato de amarelo e no lugar certinho. Ao final da aula, a professora dependurava todos os desenhos (iguais) num barbante, o esticava e criava assim o “varal de criatividade” (einh!?). Bem, algumas professoras tentaram desenvolver este “conteúdo programático” literalmente lá debaixo da mangueira. Uma delas deu o seguinte depoimento:

- “Foi até bom, por causa do calor, lá é mais fresco, mas seria melhor se a gente pudesse ter umas carteiras e se pudesse pregar um quadro negro na árvore”. Neste caso, eu respondia:

- Professora, é melhor a senhora voltar para sua sala, ao invés de matar a mangueira. Em outras palavras, sem a infra-estrutura esta professora não conseguia trabalhar.
Outras professoras também foram com suas folhas mimeografadas (“o patinho”). Mas vendo que não havia condições de colori-las na perna ou no chão, resolveram recolhê-las. Algumas mudaram o dito “conteúdo”. Outras, poucas, pediram para as crianças fazerem seus “patinhos”, mas já que não podiam colorir, que usassem o que tinham à sua volta: folhas, sementes, paus, pedra, terra, etc. E os resultados foram patinhos, oncinhas, gentinhas, casinhas, historinhas, etc. Ao voltar para dar seu depoimento, uma destas professoras comentou:

- “Engraçado, eu pensei que os meninos fossem virar uma fumaça lá debaixo da árvore, pois na sala eles só ficam falando “tia, posso ir no banheiro”, “tia, posso ir lá fora”; eu pensei, lá fora, eles iam sumir. Aconteceu, porém um negócio engraçado: eles ficaram mais ligados do que normalmente. Eu não precisei chamar a atenção, nem gritar. Eles estavam mais disciplinados do que quando estão na sala... Parece que havia uma disciplina assim... na cabeça deles...”

- Disciplina como, professora? Provoquei eu.

-“Disciplina...assim...disciplina na cabeça... intelectual”, conseguiu sintetizar ela depois de algum tempo.

Foi a oportunidade que eu queria. Peguei um livro, abri e entreguei para esta professora ler. Ao que ela comentou:
- “Hum, cansei de ler este cara e nunca entendi nada...hum!..” Era Paulo Freire. E ela leu o seguinte: “...só há aprendizagem quando há disciplina intelectual, vontade, interesse...”
- Pronto! Professora, pode devolver o livro!, lhe disse.
- “Ah, então é isso?! Não sabia!”, concluiu ela.
Naquele momento, descobrimos a “pólvora”: Paulo Freire não é para ser lido, mas para ser praticado. E o homem se fez em verbo. E nunca mais deixamos de conjugá-lo e sempre no presente do indicativo: eu paulofreire, tu paulofreiras, ele paulofreira, nós paulofreiramos, vós paulofreirais e eles paulofreiram.

E foi dessa experiência que brotou, como que naturalmente, os princípios metodológicos de nossa proposta:

- Como praticar Paulo Freire?

- E o mais elementar de seus conceitos, a coluna vertebral de sua metodologia: ação - reflexão - ação. Como fazer isso?

Pronto! Acabamos de descobrir (ou reinventar) a roda. A roda seria o início e o fim de nossos trabalhos. Seria o nosso jeito de praticar “ação-reflexão-ação”. O nosso primeiro projeto recebeu o nome de “sementinha ou a escola debaixo do pé de manga”. E era de fato uma sementinha, nova, atrevida, teimosa e persistente.

O nosso projeto, antes de ter qualquer objetivo, nasceu com uma lista de “não-objetivos educacionais[1]”. A nossa estratégia de trabalho estava definida: se nos policiássemos para não praticar ou reproduzir tudo o que recusávamos como prática educativa, que denominamos “não-objetivos”, teríamos lucro. E assim esta sementinha foi sendo plantada, adubada, tratada, replantada, aguada...crescendo.

Com o tempo, o andar na contra-mão das práticas educativas tradicionais, o aprendizado dos erros e a sistematização dos acertos, nos deu a estrutura metodológica que, em linhas gerais, pode ser assim delineada:
- O espaço que denominamos “escola” é o bairro onde vivem os alunos. Os seus “muros ” são os limites do bairro e das pessoas;

- As “salas de aula”, “laboratórios”, “biblioteca”, “quadras de esporte” são as sombras das árvores, o alpendre ou quintal das casas, as praças públicas, etc.
- O “conteúdo programático” desta escola é a cultura - os saberes, os fazeres e os quereres – produzidos, vividos e desejados por esta comunidade;
- Os “educadores” são todos os que entrarem na roda, sejam crianças, pais, educadores, etc.
Na roda todos opinam e sugerem. E todas as opiniões e sugestões são valorizadas. Não pode haver exclusão de propostas, nem votação. Há, sim, consenso do grupo e definição de prioridades. Por isto afirmamos que todos que participam da roda são educadores, independentes da idade, altura, sexo, etc.
Assim desenvolveu-se o “Sementinha”: agindo, refletindo, agindo. Consolidou-se como metodologia e referência educacionais. Transformou-se em política pública. Serviu de base para todos os demais projetos educacionais desenvolvidos pelo CPCD.

A pedagogia da roda do “Sementinha”[2] gerou a pedagogia do brinquedo do “Ser Criança”[3] [CPCD1] e possibilitou a pedagogia do sabão das “Fabriquetas”[4]. E é a partir deste triângulo metodológico que o CPCD atua e pretende cumprir sua missão institucional, em benefício da população deste país.

Tião Rocha é antropólogo (por formação), educador popular (por opção) e folclorista (por necessidade). Fundador e presidente do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento - CPCD, organização não governamental sem fins lucrativos, fundada em 1984, em Belo Horizonte/MG


[1] Para conhecer os “não-objetivos” educacionais, entre no nosso site ou envie-nos um e-mail solicitando. http://www.cpcd.org.br/

[2]Considerado “exemplo de modelo educacional para os países do 3º Mundo” pela OMEP -Organização Mundial de Educação Pré-Escolar, no Congresso da Tchecoslováquia, 1987.

[3]Grande vencedor do 1º Prêmio Itaú-Unicef “Educação & Participação”, em 1995, o 1° lugar entre 406 concorrentes de todo o Brasil, “como a melhor e mais efetiva contribuição para a escola pública brasileira”.

[4]Responsável pela criação da Cooperativa “Dedo de Gente” dos produtores artesanais e indústrias caseiras do centro e norte de Minas Gerais, a 1ª cooperativa brasileira formada exclusivamente por jovens e mulheres participantes de fabriquetas comunitárias.


[CPCD1]- Vencedor em 1º lugar do Prêmio Itaú-Unicef “Educação & Participação”/ 1995, entre 406 concorrentes de todo Brasil, “como a melhor e mais efetiva contribuição para a escola pública brasileira”.

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